terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A gente se acostuma


A gente se acostuma
"Eu sei que a gente se acostuma.
 

Mas não devia.
 

A gente se acostuma a morar em
apartamentos de fundos e a
não ter outra vista que não
as janelas ao redor.
 

E porque não tem vista,
 

logo se acostuma a não olhar para fora.
 

E porque não olha para fora,
 

logo se acostuma a
não abrir de todo as cortinas.
 

E porque não abre as cortinas,
 

logo se acostuma a acender cedo a luz.
 

E a medida que se acostuma,
 

esquece o sol, esquece o ar,
 

esquece a amplidão.
 

A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
 

A tomar o café correndo porque está atrasado.
 

A ler o jornal no ônibus porque
não pode perder o tempo da viagem.
 

A comer sanduíche porque
não dá para almoçar.
 

A sair do trabalho porque já é noite.
 

A cochilar no ônibus porque está cansado.
 

A deitar cedo e dormir
pesado sem ter vivido o dia.
 

A gente se acostuma a esperar
o dia inteiro e ouvir no telefone:
 

"Hoje não posso ir".
 

A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta.
 

A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto.
 

A gente se acostuma a pagar por tudo,
 

o que deseja e o de que necessita.
 

E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
 

E a pagar mais do que as coisas valem.
 

E a saber que cada vez pagará mais.
 

E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro,
 

para ter com que pagar
nas filas em que se cobra.
 

A gente se acostuma à poluição.
 

Às salas fechadas de
ar condicionado e cheiro de cigarro.
 

À luz artificial de ligeiro tremor.
 

Ao choque que os olhos levam na luz natural.
 

Às bactérias de água potável.
 

A gente se acostuma a coisas demais,
para não sofrer.
 

Em doses pequenas, tentando não perceber,
 

vai afastando uma dor aqui,
 

um ressentimento ali, uma revolta acolá.
 

Se a praia está contaminada,
 

 gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
 

Se o cinema está cheio,
 

a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço.
 

Se o trabalho está duro,
 

a gente se consola pensando no fim de semana.
 

E se no fim de semana não há muito o que fazer,
 

a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito,
 

porque tem sempre sono atrasado.
 

A gente se acostuma para não
se ralar na aspereza,
 

para preservar a pele.
 

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
 

para poupar o peito.
 

A gente se acostuma para poupar a vida.
 

Que aos poucos se gasta,
 

e que se gasta de tanto se acostumar,
 

e se perde de si mesma..."
 
Clarice Lispector
 

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