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Minha querida Cristina,
Quando a vida começa, meu amor? A vida começa apenas no nascimento? O marco representado pelo nosso aniversário? Ou será que a vida começa logo após a fecundação? Quando somos um mero amontoado de células se multiplicando velozmente para se tornar um ser humano?
Será que a vida começa quando o coração bate pela primeira vez?
Sabia que o coração é o primeiro órgão a se desenvolver? Apenas dois canudinhos que se formam por volta da terceira semana. Nossa primeira tentativa de vida.
A minha vida começou, ou melhor recomeçou, quando descobri que estava morrendo. Um problema do coração, irônico, não?
Claro que isso não aconteceu de repente. Logo após o médico me dar minha sentença, tudo que fiz foi acatá-la. Ficava em sentado em casa em um canto, esperando a morte me levar. Eu tinha saudades de minha esposa, Mariana.
Você teria gostado dela. Era uma mulher carinhosa, amorosa, uma companheira maravilhosa para tantos anos juntos. Tivemos dois filhos lindos e estes nos deram netos que foram o nosso orgulho.
Foi minha neta mais nova, Ana Carolina, quem encontrou aquela foto nossa em meio aos meus guardados, aquela que tiramos com um lambe-lambe, lembra? Estava dentro de uma caixa de sapatos velha, junto com outros tesouros de minha juventude. Um velho pião de madeira que meu avô fizera para mim, enrolado em um barbante a muito puído, as cartas que trocamos depois que você se mudou, e algumas poucas fotografias antigas, a maioria ainda em preto e branco, muitas das pessoas nelas já se foram, enquanto o meu coração cansado teima em continuar batendo no meu peito. Talvez ele batesse não por teimosia, mas por esperança de ainda te encontrar.
Quando Ana Carolina encontrou este meu pequeno baú do tesouro, ficou logo curiosa comas cartas e com a foto onde tinha um "bonitão" (palavras dela) e uma moça de mãos dadas. E, é claro, ela ficou ainda mais curiosa que o tal "bonitão" era eu. Ela logo quis saber quem era aquela moça na foto, já que era óbvio que não se tratava da avó dela.
Olhar aquela foto fez eu sentir algo estranho no meu peito, algo que não sentia haviam muitos anos, me sentia novamente vivo! Contei a ela a nossa história, a história de como nos conhecemos e ela me ajudou a te encontrar.
Espero que essa carta chegue as suas mãos e ao seu coração.
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Ao meu querido Antônio,
Que surpresa foi ver suas palavras após tantos anos!
Não tem ideia de como suas cartas com palavras graciosas e reflexões profundas me fizeram falta durante este tempo. Não consigo colocar em palavras a emoção que senti quando me entregaram sua carta. Não paro de chorar desde então, por isso peço desculpas se as palavras chegarem um pouco borradas, mas não se preocupe, não há um pingo de tristeza nas lágrimas que me brotaram, apenas uma pura felicidade! Felicidade por voltar, depois de todos esses anos, a ler suas palavras tão doces e reflexões tão profundas. Não fazia ideia do quanto isto me fazia falta.
Lembro dessa foto com tanta saudades. Foi um passeio lindo que fizemos juntos, dois jovens sem a menor ideia do que o futuro nos reservava e você realmente estava um “bonitão” naquele dia. Mas conte para sua neta que quando te conheci você era apenas o menino franzino que morava na casa em frente e não esse bonitão da foto. O menino franzino desajeitado que sempre me olhava com admiração e que pouco a pouco foi se aproximando e me conquistando.
Uma pena que a vida nos afastou e nos levou para longe um do outro, mas fico feliz que você tenha encontrado uma companheira pela vida. Assim como você, eu também me casei e tive filhos e netos. Seu nome era Henrique e ele foi mais do que um marido, foi um amigo e um parceiro. Ele nunca me disse, mas tenho certeza de sentia ciúmes de você e das suas cartas que eu guardei e relia ao longo dos anos. Engraçado, mas foi apenas depois que ele partiu que eu senti que ler suas cartas fosse uma espécie de traição, como se vocês pudessem compartilhar o meu amor, mas não a minha saudade.
Gostaria de rever esta antiga fotografia, se fosse possível. Espero que sua próxima carta não demore tantos anos a chegar.
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Minha adorável Cristina,
Meu Deus, você ainda lembra de mim como um menino franzino? Pensei que esse tempo tivesse ficado lá atrás por bem.
Ainda lembro do dia que te vi pela primeira vez, chegando com seus pais para morar na casa em frente. Eu ainda usava calças curtas, como se dizia naquele tempo, e você com seu vestidinho parecia uma princesa de cinema, ainda mais com seus cachinhos dourados e olhos tão azuis que pareciam duas contas de vidro. Lembro até hoje de seu pai gritar do outro lado da rua que eu iria acabar engolindo um mosquito com a boca aberta daquele jeito. Hoje a lembrança me faz rir, mas na época eu fiquei muito envergonhado de ver você rindo de mim.
Os anos passaram e você se tornou uma princesa cada dia mais linda, levou anos para te convidar para sair, mas enfim consegui e foi o melhor dia de toda a minha vida! Pena que tenha durado tão pouco e você logo teve que se mudar novamente...
Minha neta conseguiu fazer uma cópia de nossa fotografia para lhe enviar, incrível o que essas crianças conseguem fazer esses dias.
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Meu lindo Antônio,
Muito obrigado pela fotografia. Você está ainda mais bonito nela do que eu me lembrava. Sua neta está certíssima, você está um verdadeiro “bonitão”.
Você levou tanto tempo para me convidar e mesmo assim foi por uma carta. Você sempre soube se expressar muito mais por seus olhos e por sua caneta do que pelas palavras faladas. Mas não estou reclamando. Você sempre escreveu lindamente.
Meu pai teve que se mudar por conta da guerra e voltamos para a Itália, e com tantas mudanças acabamos nos perdendo um do outro, por isso mesmo foi tão emocionante receber notícias suas após tanto tempo.
Mas a sua primeira carta, aquela que você me convidou para sair pela primeira vez, esta sempre me acompanhou e é o meu tesouro mais querido.
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Minha princesa perdida,
Nesse momento quem escreve esta carta é minha neta, Ana Carolina, pois infelizmente não consigo mais empunhar minha amada caneta. Meu coração, esse velho guerreiro, parece ter finalmente desistido de lutar.
Se ele continua a bater é apenas pelo amor que eu redescobri em você.
Queria por uma última vez te envolver em meus braços antes de partir.
Eu te amo, Cristina!
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Meu amado Antônio,
Sei que esta carta nunca chegará as suas mãos, pois a notícia de sua partida chegou junto com sua última carta pelas mãos de sua neta. Talvez o seu espírito esteja aqui ao meu lado, lendo estas palavras sobre os meus ombros. É nessa crença que eu escrevo esta carta derradeira.
Sua neta tem sido um verdadeiro amor, cuidando muito bem de mim junto com meu neto. Ela me trouxe as minhas velhas cartas que você guardou tão diligentemente por todos esses a nos. Ao relê-las, lembrei das cartas que você me enviara a tanto tempo, e ela e Matheo tem se esforçado para anotar as minhas lembranças, registrando a nossa história, trazendo de volta a vida as cartas perdidas.
Ela me conta histórias da sua vida, e eu lhe conto as minhas, com a ajuda de meu neto, já que minha memória não é mais o que fora. Mas a nossa história de juventude, esta eu ainda me lembro muito bem! Há dias em que eu me transporto para aquele tempo eles se deliciam com estas histórias.
Meu amor, também queria ter sentido o seu abraço uma vez mais, acariciando o seu rosto, ter ouvido a sua voz novamente, mas talvez tenha sido melhor assim, serei para sempre sua princesa de cachinhos dourados e você meu cavalheiro silencioso que falava mais com a caneta e com os olhos do que com seus lábios. Lábios esses que eu conheci tão bem.
Mesmo sofrendo com a sua ausência, não trocaria estes últimos meses em que voltamos a trocar cartas por nada neste mundo. Cada carta sua que chegava eu perdia o ar. Suas palavras me trouxeram a vida de volta, uma vida que eu imaginei já terminada.
Em breve irei te encontrar, e se Deus é verdadeiramente amor, si que encontraremos uma forma de estarmos todos juntos, eu, você, sua Marina e meu Henrique, em paz e no amor do Senhor por toda a eternidade.
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